segunda-feira, 1 de julho de 2013

tu não te moves de ti

"HH: Eu achava que se alguém conseguisse viver passionalmente, com intensidade total o instante efêmero, agarrando uma determinada qualidade extrema de emoção, eu pensava, essa pessoa seria tomada pelo fervor de alguma coisa chamada grosseiramente de eternidade. Hoje eu mudei e a pergunta que me faço e que faço a todos é a seguinte: é lícito dar ao outro um tal nível de intensidade, vivendo todos nós nesse mundo dissociado, caótico, absurdo, esquizofrênico em que vivemos? Quem compreende que esse mundo cindido nos leva inexoravelmente à decomposição de nós mesmos, à degradação de nós mesmos, à morte e ao esquecimento do que realmente somos ou poderíamos ter sido, forçosamente se vê levado, para sobreviver, a compactuar com o status quo. Sim, você tem que compactuar, com mil artimanhas, concessões, truques, frustrações, é o preço da tua própria sobrevivência. Então todos esticamos o arco da pactuação até o limite extremo que podemos. Mas, eu penso: essa própria pactuação, essa própria tergiversação com a repressão geral de si mesmo, as máscaras diárias, que usamos, não serão todas armas úteis para a salvação daqueles que são demasiado frágeis para assumir a grande verdade do que poderiam ser e por timidez escolhem não ser, por timidez ou sabedoria intuitiva até? (...)
Até onde se pode realmente ser livre? Como seria um ser humano totalmente livre, sem nenhuma repressão, sentindo que, no entanto, ele faz parte de um mundo caótico e que milita contra a sua liberdade? Se você sentir que teu "eu" está sofrendo uma deterioração na sua parte mais funda e autêntica, no seu âmago álmico - o que poderia acontecer depois?

LGR: Na rua opinião, jamais algum grupo humano, alguma cultura, algum indivíduo foi totalmente livre? A Grécia antiga? O homem novo postulado por Reich? Adão?

HH: Talvez Adão. Mas ele traz consigo toda a problemática da queda, portanto não sei se ele pode ser totalmente feliz na sua liberdade, se ele tem conhecimento da culpa. Pode ser livre quem sabe que caminha para a morte? Mas não me refiro a essa morte orgânica, ritual, do suor, da urina, do sangue, do mofo, não. Falo da morte espiritual do ente sozinho, consciente do seu apodrecimento. Será que alguém terá coragem de tirar todas as máscaras e existir com o rosto nu e suportar a sua humanidade diante de um destino tão opressor à sua volta? É válida a libertação de um só ou nem todos podem salvar-se?"

Hilda Hilst em entrevista a Léo Gilson Ribeiro, 1980.

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